“Me lembro“Me lembro que era uma segunda-feira à noite. Eu tinha chegado do trabalho, estava em casa, abri uma garrafa de vinho com meu marido e a gente falou que tinha saído o resultado e abrimos. E no que abrimos, comecei a ler e vi escrito ‘carcinoma invasor’. Só que na minha ignorância não sabia que era câncer... achei que vinha escrito ‘câncer’ no diagnóstico. Fiquei chocada. Meu marido falou: ‘Gi, você está com câncer’ e falei que não era possível. Não consegui chorar na hora, fiquei muito em choque. No dia seguinte fui direto ao consultório da minha médica com o laudo. Eu lembro que perguntei: ‘É maligno?’. E ela: ‘sim’”.
Em janeiro deste ano, então com 31 anos, Gisele Gimenes recebeu o diagnóstico da doença. Quatro meses após realizar exames no ginecologista, ela sentiu um nódulo embaixo da axila durante um movimento de alongamento e pediu a sua médica para tirar a dúvida. E assim foi. Com resultado em mãos, começou a correr atrás de informações, buscar uma equipe médica e iniciar o tratamento para o seu tipo de câncer – os protocolos podem variar muito de acordo com cada caso, algo que ela foi descobrindo aos poucos. “Comecei com a quimioterapia. Fiz 6 sessões, que reduziram muito o meu tumor e ele não ficou mais palpável. Comecei no dia 22 de fevereiro e terminei 10 de junho. No dia 4 de julho eu fiz a cirurgia. Depois fiz 19 rádios. Agora entro em uma fase preventiva”. Esse é só o resumo. Toda a situação é muito mais complexa.
“Na última semana de janeiro já tinha marcado dois médicos para ouvir opiniões diferentes e acho que o mais difícil do diagnóstico é você não saber o que vai acontecer. Você começa a ler coisas na internet porque hoje a informação é muito fácil, só que são vários protocolos diferentes de tratamento. Sou privilegiada porque tenho condições de pagar, porque quem não tem condições tem que ver a opção que o SUS e o plano te dão e é um desafio encontrar alguém em quem você tenha confiança nesse processo. É essa é a pessoa que vai te dar suporte, que vai tirar dúvidas. Então faz toda a diferença esse processo de amparo humano e não só a parte da medicina de promover um protocolo de tratamento adequado, mas esse suporte pessoal que eu fui muito privilegiada de contar”, lembra Gisele.
Atualmente, o câncer de mama é o 2º tipo de câncer mais frequente entre as mulheres e também é o que mais mata no Brasil. De acordo com a mastologista Denise Biangolino, estima-se que sejam diagnosticados cerca de 60 mil casos ao ano, e que 1 em cada 8 mulheres vá apresentar a doença ao longo da vida.
Faz toda a diferença esse processo de amparo humano e não só a parte da medicina de promover um protocolo de tratamento adequado.
“A sobrevida da doença em 5 anos no nosso País encontra-se em torno de 75%, quando poderíamos estimar uma taxa de cura de até 95% se todas as mulheres fossem diagnosticadas de forma precoce através da mamografia de rotina. Infelizmente nossa cobertura mamográfica no Brasil oscila entre 1-35% dependendo do Estado, o que está muito aquém dos 70% recomendados pela Organização Mundial de Saúde”, aponta a especialista.
A indicação dos médicos é clara. É a mamografia que pode identificar de forma precoce os tumores. Isso porque, quando o nódulo já é palpável, em geral o estágio não é tão inicial. “A questão do autoexame é que é importante que as mulheres conheçam o próprio corpo. Mas para falar de diagnóstico precoce, não podemos defender o autoexame porque quando eu palpo já não é no início. A gente sabe que algumas mulheres mais jovens vão fazer por autoexame porque não fazem mamografia e é importante perceber alguma alteração no corpo. Não somos contra. Mas não é uma coisa que substitui os exames ”, explica Gilberto Amorim, médico do conselho científico da Fundação Laço Rosa, que atua na defesa de pacientes com câncer de mama.
Muitas mulheres não sabem, mas mudanças no estilo de vida podem reduzir em até 28% os casos de câncer de mama.
A mastologista concorda. “Muitas mulheres, ao realizarem o autoexame, deixavam de buscar um profissional de saúde para serem examinadas e não faziam a mamografia porque tinham uma falsa sensação de segurança”, aponta. “Por isso atualmente preconizamos o autocuidado e que a mulher fique atenta a possíveis mudanças no seu corpo e possa relatar ao seu médico, mas que não deixe de passar por exame físico com o mastologista e de fazer a mamografia anualmente após os 40 anos”, completa Biangolino.
Além disso, a especialista aponta para a importância de manter hábitos saudáveis também como forma de prevenção. “Muitas mulheres não sabem, mas mudanças no estilo de vida podem reduzir em até 28% os casos de câncer de mama. Manter uma alimentação saudável, evitar o sedentarismo e o sobrepeso, além do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, são fatores importantes na prevenção”. Essa é apenas uma das mudanças do panorama geral da doença no Brasil com o passar dos anos.
Tabus e novas questões sobre o câncer de mama
A recomendação da Sociedade Brasileira de Mastologia é que todas as mulheres acima dos 40 anos passem por avaliação física com profissional especializado e faça mamografia todos os anos. Mas casos como os de Gisele, diagnosticada na casa dos 30 anos, tem sido mais comuns no Brasil.
“Em caso de histórico familiar positivo para o câncer de mama, endométrio e próstata, entre outros, principalmente se antes dos 50 anos e mais de um caso na família, a recomendação é de que se inicie o rastreio 10 anos antes da idade em que o parente mais próximo apresentou a doença”, explica a mastologista.
Gilberto Amorim, há 25 anos trabalhando na área de câncer de mama, acredita que hoje há muito mais informação sobre a doença circulando e que as pacientes chegam mais questionadoras e empoderadas ao consultório.
“As mulheres, muitas vezes as mais jovens ― mas não só elas ― são mais questionadoras, com mais acesso a informação. E não aceitam tudo que a gente fala. Somos questionados e temos que explicar bem os processos; ela tem direito de ouvir outras opiniões e isso é bom, é positivo”, aponta.
Além disso, os casos em mulheres abaixo dos 40 anos têm trazido mudanças para a forma de tratamento da doença. Essas pacientes estão em idade de alta produtividade no mercado de trabalho e muitas vezes não tiveram filhos e tem essa vontade e apresentam novas questões aos médicos.
“A mulher pode perder um tempo grande. Alguns tratamentos são bem longos e podem afetar a carreira. Às vezes é uma paciente jovem, mas já alcançando uma posição legal, fazendo mestrado ou doutorado, e ela tem a carreira interrompida e tem esse desafio a mais”, avalia Amorim.
De acordo com pesquisa divulgada pela Fundação Laço Rosa em parceria com o LinkedIn em outubro deste ano, somente 31% das pacientes continuam trabalhando durante o tratamento. Gisele foi uma dessas mulheres que se ausentou pouco do trabalho como gerente de atendimento de um aplicativo bancário. O que foi muito importante para o seu processo de tratamento.
“Eu contei no meu trabalho, eu não escondi que estava com a doença até porque eu ia me ausentar, mas continuei trabalhando durante todo o processo e acho que isso foi muito bom porque me deu a sensação de vida normal. É um tratamento sério, vai tirar o eixo da rotina, mas a vida segue. E acho que foi bom porque é difícil você parar sua vida em função disso e depois ter que voltar. Como não parei, foi um processo muito suave a relação entre trabalho e tratamento. E existe o tabu do cabelo, as pessoas te olham achando que precisam aliviar um pouco na reunião ‘afinal, ela está com câncer’, então tem isso. , por um lado, é uma certa empatia. Ter um problema de saúde em um ambiente em que as pessoas normalmente são saudáveis traz a parte mais humana à tona. Vi o lado humano das pessoas nessa primeira parte do processo do tratamento, que foi a mais difícil”, lembra.
Além disso, outra questão do diagnostico em mulheres mais jovens é a maternidade. “São pacientes que muitas vezes não tem filhos, que estão programando para depois e o depois às vezes não chega. Ela ia deixar para ter filhos com quase com 40 e teve câncer com 35 e se vê diante de um diagnóstico que mesmo comm possibilidade alta de cura faz com que ela adie esse sonho. E isso pode até inviabilizar por completo esse desejo porque congelamento de óvulos é uma realidade, mas o custo é alto”, aponta Amorim.
“Ha 5 anos era ficção científica, isso nem era conversado, a gente fazia a quimio e pronto, mas agora não. A mulher entende, quer ficar boa e curada, mas quer ter filho e pede um jeito de fazer funcionar. Temos desafios novos para os profissionais de saúde”, afirma o especialista.
Com Gisele foi exatamente o que aconteceu. Diagnosticada aos 31 anos, ela ainda não planejava ter filhos, mas teve que pensar nisso no meio de todas as novidades e dúvidas que de repente apareceram em sua vida.
“Antes minha preocupação era trabalhar muito porque estamos nessa idade de ascensão profissional. Eu tinha acabado de casar, não tinha sido mãe, a oncologista deixou claro que a quimioterapia poderia afetar a fertilidade então eu fiz, antes de começar o tratamento, um processo de congelamento de óvulos porque vou tomar uma medicações oral por 5 anos pelos menos e não vou poder engravidar. Então imagina eu com 37 para 38 anos, quando eu vou supostamente terminar essa etapa... já não é mais tão tranquilo engravidar naturalmente, então fiz o processo de congelamento de óvulos. São uma série de questões que você tem que lidar”.
Isso tudo sem contar as mudanças de rotina e do dia a dia, totalmente afetadas pelo tratamento. “Sua qualidade de vida muda. Então por mais que eu esteja tendo acesso a um tratamento de ponta, as medicações são fortes. Então hoje pra mim exercício físico não é mais uma questão de beleza, forma física, é uma questão de bem estar e saúde. Quando faz o corte hormonal tem muito impacto na libido, por exemplo. Então em um casamento isso tem que ser muito bem conversado e seu parceiro tem que estar muito ciente de que tudo isso acontece. Você tem que olhar para muitas questões da sua vida, não é só o tratamento”, conta Gisele.
Lições e futuro do tratamento do câncer de mama
Apesar das constantes mudanças e novos desafios que surgem na área e os problemas com acesso a exames e tratamentos ― ainda desigual na rede pública do País ― , especialistas ouvidos pela reportagem apontam que o cenário como um todo apresenta avanço positivo.
“A gente teve uma melhora muito grande e trabalhamos com uma população com mais acesso a informação. Ainda vemos muitas mulheres com problemas com maridos, por exemplo. Muitos homens, que já não são historicamente bom cuidadores, não ‘aguentam a barra’. Ainda é muito impactante para a mulher. Tem a questão da sexualidade, feminilidade, autoestima e o próprio tratamento tem que usar hormônios, a paciente entra em menopausa precoce, é um tratamento difícil para a mulher como um tudo. Fora isso, ainda é difícil falar sobre câncer de mama com tanta tranquilidade, ainda existe estigma, tem gente com dificuldade de falar a palavra ‘câncer’, mas no geral lidam melhor, escondem menos, tem uma rede de apoio melhor”, avalia Amorim.
Ainda vemos muitas mulheres com problemas com maridos, por exemplo. Muitos homens, que já não são historicamente bom cuidadores, não ‘aguentam a barra’.
A mastologista Denise Biangolino também vê muitas evoluções e acredita que ainda existam ideias para serem desconstruídas em relação ao tema. “Existe um tabu muito grande com relação ao diagnóstico de câncer e de que esteja sempre relacionado com a morte ou com cirurgias mutiladoras”, aponta.
“Um dos grandes medos também se relaciona com a quimioterapia, que atualmente, além de ser muito mais direcionada as células tumorais e melhor toleradas pelas pacientes, pode nem ser necessária em estágios iniciais. Precisamos que as mulheres entendam que o câncer de mama está aí, ele existe e acomete muitas mulheres. Que somente com acompanhamento médico adequado e mamografia anualmente podemos fazer o diagnóstico precocemente e ter altas taxas de cura para a doença. Precisamos que entendam que a maioria dos cânceres de mama não tem relação familiar e pode ser muito influenciado pelo estilo de vida”.
Precisamos que as mulheres entendam que o câncer de mama está aí, ele existe e acomete muitas mulheres.
Para quem passou – e ainda passa por isso – está tudo bem claro e muitas lições foram aprendidas. “Gosto de falar sobre isso porque quando estava no processo eu procurei muito depoimentos de mulheres e lia muito. Me alimentava dessas informações e acho que ajudou a construir um cenário não tão trágico de que estava tudo bem. E acho que antes da importância do diagnóstico é importante a gente se priorizar”, aponta Gisele.
“A gente parar e ver como está nossa saúde. A gente faz tento pelo trabalho, pelos outros, pela nessa diversão e às vezes faz tão pouco pela nossa saúde: não faz exercício, não come bem, não faz exame. Isso me ensinou a me priorizar. Hoje não tenho pudor nenhum de, se eu precisar, sair 15h do trabalho para fazer um exame porque se a gente não essa bem, não vai ter a gente para trabalhar. Cuide-se primeiro. Cuide das suas necessidades primeiro e depois o outro, depois o trabalho, depois a rotina. Primeiro a gente tem que estar bem”.
Fonte: Huffpost
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